A primeira viagem ao redor do mundo, eu empreendi graças a Georges Remi, ou Hergé, mais conhecido como o criador das aventuras de Tintim.
Por meio de suas histórias em quadrinhos, me enfronhei na rota do ópio no Oriente, mergulhei na crise do petróleo bem antes da criação da Opep e cheguei até os templos incas do Peru sem ter de me submeter ao desconforto da famosa viagem pelo trem da morte, um ritual de passagem muito valorizado entre os jovens da minha geração.
Imagens desses lugares estão gravadas na minha mente desde sempre, mas nenhuma de forma tão vívida quanto a dos dois livros sequenciais, “As Sete Bolas de Cristal” e “O Templo do Sol”, que levam Tintim, Milu e seus amigos até as profundezas da selva peruana.
Pois eu nunca esperaria que, na vida real, minha primeira viagem ao Peru se daria de maneira tão confortável e fácil quanto o folhear de um livro de Hergé.
Aterrissamos no aeroporto de Cusco para passar o último feriado de Corpus Christi, em junho passado, em um jatinho de táxi-aéreo que levava como passageiros meu afilhado, que aqui chamaremos pela alcunha de “general Alcazar”, o pai dele, a quem trataremos pelo codinome de “capitão Haddock”, e uma amiga de velha data, que, em nome do anonimato -mas apenas por isso-, será chamada neste texto de “Bianca Castafiore”.
É uma maravilha esse negócio de avião particular. Em pouco mais de três horas fizemos SP-Cusco, com direito a panorâmica do lago Titicaca, na Bolívia, e, num piscar de olhos, já estávamos no Palácio Nazarenas, o melhor hotel da cidade, experimentando o benefício do interruptor que liga o suprimento de oxigênio usado para prevenir contra o “soroche”, o mal das alturas que pega no pulo o turista despreparado para os respeitáveis 3.400 m de altitude da cidade de Cusco.
PROCISSÃO NA PRAÇA
Sem tempo a perder porque a festa já tinha começado no centro da cidade, liderados pelo capitão Haddock saímos atrás da procissão dos estandartes para saudar o corpo de Cristo na praça das Armas, patrimônio da Humanidade tombado pela Unesco.
Avançamos pela multidão, muita gente turbinada de chichi, a cerveja local, e logo entendemos por que a Unesco tomou o cuidado de preservar a praça.
Nada melhor do que o fervor de uma festa cristã embalada por uma cantilena em ritmo de mantra aliada ao colorido de estandartes religiosos, um bordado mais rico do que o outro, para notar o contraste entre o barroco deslumbrante das igrejas da Companhia de Jesus (século 16) e o granito das pedras que formam a base de todas as construções da cidade, testemunho perene de uma civilização que remonta a 3.000 anos antes da chegada do colonizador espanhol e cujos vestígios resistiram a toda sorte de violência e, ainda hoje, enfrentam os mais furiosos terremotos.
Eu não conseguira ainda registrar toda aquela informação em mais de cinco fotos, quando o capitão Haddock, viajante experiente, avisou: “Cuidado com o bolso, o lugar deve estar cheio de batedor de carteira!” Foi ele terminar de falar e enfiar a mão no bolso para constatar: cadê a carteira? “Com mil milhões de trovões! Fui roubado!”
Disparada frenética em direção ao hotel e horas ligando para Amex, Visa, Mastercard, Diners a fim de cancelar todo o plástico que lhe fora surrupiado.
Nossa viagem começava a se fundir com a história de Hergé. Eu só não sabia ainda qual papel que me estava reservado.
APOGEU MÍSTICO
A manhã seguinte era o grande dia: tomaríamos o trem da Orient-Express para Machu Picchu, a cidade perdida dos incas.
A ida é muito agradável, há um vagão de bar com teto solar, o trem vai abrindo caminho pelo vale Sagrado dos Incas ao longo do rio Urubamba, um lauto almoço com uma carta de vinhos generosa é oferecido e há ainda degustação de batatas (há 4.000 tipos de batata no Peru). Tudo convidava para um apogeu místico.
Há um ônibus e uma subida íngreme a enfrentar entre a estação do trem e a cidade revelada para o mundo pelo norte-americano Hiram Bingham em 1911.
Nossa excitação era grande e, quando a guia designada se apresentou, saímos animadíssimos escalando os 20 minutos de degraus que levam ao início do percurso exploratório pela cidade que está a 3.600 m de altitude.
À primeira vista, a paisagem é linda e a cidade é maior do que imaginava. Mas à medida que você vai descendo e investigando cada cômodo, um sentimento de desconforto começa a tomar conta.
Foi uma sensação totalmente pessoal, senti uma certa opressão, as montanhas parecem espremer a cidade e aquele alto-astral que achei que iria experimentar simplesmente não deu o ar da graça.
Sem contar que a incidência do sol não me deixava enxergar nada do que se passava no visor do meu iPhone, o que me impediu de tirar uma única foto decente.
TRANSCENDENTAL
Voltamos ao trem exaustos. Foi ali que me dei conta de que o capitão Haddock estava verde de enjoo.
Nosso intrépido marujo começou a expelir mais fluídos por orifício do que a menina tomada pelo demo em “O Exorcista”. O mal-estar causado pela altitude perdurou noite adentro.
Chegou a um ponto, lá pelas tantas, em que tivemos de encaminhá-lo ao CIMA, Centro de Investigação de Medicina de Altitude, para que pudessem lhe ministrar soro.
Foi aí que eu descobri qual dos personagens de Tintim me cabia na história. Indo embora do conforto do hotel cinco estrelas para dormir na cama fuleira de uma clínica cusquenha, me vi nas vestes de Nestor, o mordomo de Haddock que vem no pacote da herança da propriedade de Moulinsart.
Você há de convir, um final bem mais transcendental para a viagem do que eu havia imaginado.
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Fonte: FOLHA Turismo