O matemático alemão Christian Riedke e sua mulher, a turismóloga espanhola Olga Avila Martorell, passaram seis dos últimos nove anos na estrada, ao longo de duas grandes viagens em cima de bicicletas.
“Pedalar é um jeito de conhecer de perto os lugares que visitamos”, dizem Christian e Olga, que já passaram ao todo por 40 países, em todos os continentes.
Entre as duas viagens, nasceu Naila, a filha do casal, que aos três anos, passou a maior parte de sua vida na estrada e já é capaz de conversar em cinco idiomas diferentes.
Ela fala o espanhol e o catalão maternos, o alemão paterno, além de um significativo repertório da língua portuguesa.
“Às vezes ela pede que conversemos em inglês, que é o idioma que usamos com a maioria dos viajantes que encontramos. Outro dia, ensaiou algumas expressões em tailandês. Como não entendemos nada, ela não insistiu”, diz o pai.
A última descoberta da pequena nômade é a de que a variedade de expressões que aprendeu integra idiomas diferentes, e que nem todos compreendem todos os conjuntos lexicais que ela aos poucos domina.
“Ela ainda mistura bastante, mas já está começando a diferenciar as línguas”, observa Christian.
Mas como é viajar com uma criança de três anos? “Antes arriscávamos mais. Hoje maneiramos um pouco”. O casal procura passar apenas algumas horas do dia pedalando, para que a filha não se canse.
“Não é qualquer criança que toparia; Naila é tranquila e paciente”, comenta Olga. “Ainda assim, não podemos passar horas contemplando uma paisagem. Naila não se interessa por paisagens.”
Relatos de viagem
Carregados de roupas, fogareiro, sacos de dormir e uma tenda, o casal atravessou a África de norte a sul, pernoitando nas savanas e povoados e banhando-se nos riachos que cortavam a paisagem.
Na América do Sul, visitaram quase todos os países, incluindo as pouco conhecidas Guianas e o Suriname. Na Bolívia, acamparam no maior deserto de sal do mundo, as Salinas Uyuni, dentre uma infinidade de outras paisagens.
Depois de cruzarem alguns países europeus, voltaram para a América do Sul, regressando à Argentina, Bolívia, Paraguai e Brasil, cruzaram o Pantanal e parte do litoral sul do país.
De lá, rumaram à Nova Zelândia, exploraram a Tailândia e preparavam-se para adentrar a conturbada Mianmar.
A família acumula memórias de viagem. Certa vez, no Peru, após percorrerem uma larga extensão da costa sul totalmente desabitada, encontraram um pescador solitário. “Parecia louco”, recorda Olga.
Perguntaram se podiam acampar ao lado de seu casebre de madeira. O homem, um tanto desconfiado, aceitou. Algumas horas depois, nos fundos da casa, acharam uma cesta repleta de crânios humanos. “Não tivemos coragem de perguntar o que era aquilo.”
No interior da Guiné, na África Ocidental, em uma das extremidades de uma antiga ponte, toparam com um sujeito armado de uma espingarda, guardando uma enorme máquina enferrujada. Uma companhia que se instalara na região o contratara anos antes para vigiar o equipamento desativado.
Ao final do dia, o homem voltava para casa, deixando a máquina desprotegida. “Não fazia sentido algum. Devia ser mais caro mandar trazer de volta aquele motor quebrado do que pagar US$ 30 (R$ 70) mensais ao pobre homem por tanto tempo”, diverte-se Olga.
Blog abandonado
Logo no início da viagem, tentaram manter um blog com seus relatos, mas por conta da baixa velocidade da conexão à internet em alguns países, acabaram desistindo. “Não queríamos esse tipo de rotina”, dizem. “Enviar um e-mail às vezes levava 20 minutos”.
O Brasil foi um destino recorrente do casal. Das Guianas desceram o litoral do Nordeste até Salvador. Pedalar na areia custava um pouco, mas a paisagem compensava. O ritmo das pedaladas, contudo, dependia mais do nível do mar do que da firmeza do solo arenoso.
“Precisávamos aguardar as marés baixas para atravessar os rios que desaguavam no mar”, lembra Christian.
Certa vez, para cruzar o delta de um rio, aceitaram a ajuda de um homem que se prontificou a levar à outra margem as bicicletas e o equipamento a bordo de uma canoa.
Foi apenas depois, quando tinham as pernas mergulhadas na lama até os joelhos, que se deram conta de que haviam deixado documentos e todo o dinheiro que possuíam com o desconhecido. “Viajar muitas vezes nos obriga a confiar nas pessoas. É algo muito positivo”, reflete Christian. Ao chegarem à outra margem, o barqueiro os aguardava.
Diversidade
A jornada se aproxima de um fim, ao menos por enquanto. Em julho deste ano, o casal regressa à pequena cidade de Friburgo, Alemanha, onde Christian retomará seu trabalho como professor de matemática.
“Estamos receosos. Será difícil enfrentar a rotina”, resigna-se Christian.
“As prioridades de quase todos os que conhecemos por lá são o trabalho, a estabilidade e a segurança. Qualquer estilo de vida diferente do deles é visto com ceticismo, como se estilos distintos não pudessem conviver”, comenta Olga, que também se prepara para ouvir críticas acerca dos cuidados e da criação da filha.
Os dois estão certos, contudo, de que a experiência foi a melhor educação possível para Naila. “Ela poderá não se lembrar do que viveu, mas, sem dúvida, se sentirá em casa quando estiver em meio à diversidade”, conclui Christian.
Fonte: BBC