Oriol Blanes, cozinheiro, pica cebola sobre a mesa com a perícia do profissional, em dois minutos reduz o bulbo branco a picadinho. No processo ele sofre a clássica ardência nos olhos, que o faz chorar. Ele, entretanto, não sente absolutamente nenhum cheiro da cebola. E se a comesse, também não sentiria o gosto. Blanes tem anosmia ou perda do olfato, o sentido que, junto com o paladar, forma o que a medicina denomina sistema do sabor. A doença o afetou pouco a pouco, como uma nuvem inodora e insípida que foi se espalhando sobre sua vida.
Tudo começou em um dia de verão de 2016. Passeava com sua esposa e seus dois filhos quando eles ficaram radiantes ao sentir o cheiro de uma apetitosa refeição. Ele não sentiu nada. Tempos depois saiu do carro em um posto de gasolina e estranhou não notar em seu nariz o odor penetrante do combustível. O desconcerto se tornou pesadelo quando, meses depois, nos fogões da Escola de Hotelaria de Girona, onde dá aulas, lhe disseram que o prato que havia preparado estava com muito sal. “Fui ao médico e me disseram que tinha sinusite, e que poderia afetar meu olfato para sempre. Eu, um cozinheiro, sem olfato. Isso é como um pintor sem sensibilidade nas mãos. Eu me senti desprotegido e prometi que lutaria para recuperá-lo”, lembra em Girona.
O olfato é responsável por aproximadamente 80% do conjunto sensorial que, com o paladar, forma o sabor. Ou seja, Blanes não é capaz de sentir cheiros e interpretar os sabores, ainda que tecnicamente tenha paladar. Parece um labirinto semântico, mas um exemplo pode explicar de maneira mais simples. Se Blanes — e qualquer um como nariz tampado ou entupido — come uma fruta, ao colocá-la na boca detectará o gosto e poderá definir se é doce, ácida e azeda, e poderá até adivinhar sua textura, mas sem vê-la não saberá se é uma pera ou uma maçã.
“Eu sempre dou o exemplo do creme e o arroz com leite. Aparentemente seu sabor é muito diferente, mas pode diferenciá-los somente com o nariz, porque na boca são praticamente iguais”. Quem fala é Jesús Porta-Etessam, chefe da seção de neurologia do hospital Clínico San Carlos de Madri e diretor geral da Fundação do Cérebro. “Basicamente, o que te permitirá diferenciar um bom vinho e um vinho de garrafão é o olfato. Os gostos se mantêm, mas o policromatismo brutal que temos é determinado pelo olfato”.
A vida sensorial de Oriol Blanes se tornou insossa. Mora há 42 anos na Costa Brava, em um entorno natural transbordante de fragrâncias de que agora não pode desfrutar. Dá no mesmo que esteja na montanha, onde faz corridas de trail running, e à beira-mar, nas barracas de pescadores de Calella de Palafrugell e Llafranc, onde cozinha para a família e amigos. O habitual festival de aromas se transformou para ele em “um mundo neutro”. Em preto e branco.
É sintomático que seja necessário recorrer à visão para expressar as disfunções do olfato e do paladar. Sobre eles “falta muita pedagogia”, de acordo com Josep de Haro, otorrinolaringologista, chefe clínico do Badalona Serveis Assistencials e especialista em patologias sensoriais. “Segundo o hábito social parece que perder o olfato não significa nada. Falta muito para que se visualize sua importância, mesmo com uma quantidade gigantesca de pessoas com problemas. Entre 2% e 3% da população mundial não têm olfato. São milhões de pessoas. E boa parte nem sabe”, alerta. Sobre as alterações do sabor há pouca informação por uma questão básica, de acordo com Porta-Etessam: “A visão e a audição são necessárias para subsistir em nosso ecossistema. Sem olfato e paladar só a qualidade de vida piora. O que acontece é que até o final do século XX a medicina tratava a doença que dificultava a vida do paciente. No XXI atende também a qualidade dela”.
Oriol Blanes é hoje um cozinheiro às cegas. Precisa de um guia para saber se os pratos estão no ponto
De acordo com os especialistas, há uma infinidade de causa possíveis para esse transtorno, de um traumatismo craniano a uma gravidez, passando por algo tão comum como um resfriado e uma gripe. Blanes, de fato, perdeu seu olfato por uma inflamação crônica das cavidades nasais, ou seja, do interior do nariz. Recebeu tratamento de cortisona e melhorou momentaneamente. Em uma reunião da escola notou um cheiro de baunilha. “Eu não sabia se era eu ou meu inconsciente, porque de noite sonho com gostos e que os recupero. Mas não, me disseram que alguém havia colocado uma vela com essência. Esse dia foi muito especial”, lembra. Chegada a hora do jantar, pensou que deveria aproveitar o momento e começou a cozinhar. Mas quando estava misturando ingredientes percebeu que havia perdido o olfato e o paladar outra vez. Depois conseguiu ficar quase um mês com ambos. Mas desapareceram de repente, e até hoje. Isso condicionou sua vida pessoal — “comer é um trâmite” —, a social, e, evidentemente, a profissional. Como um dos casos descritos por Oliver Sacks, Blanes é hoje um cozinheiro às cegas, que deve utilizar um guia — sua esposa em casa, um aluno nas aulas — para saber se os pratos estão no ponto certo. Graças a seu problema aprendeu a cozinhar de outra maneira. “Inconscientemente, agora uso muito mais crocantes, muitas texturas acentuadas e picantes”. Qualquer coisa vale na procura da saída de um mundo sem sabor.
É um dia de primavera e na cozinha do El Celler de Can Roca o silêncio assusta. São 9h30 e cinco doceiros se movem em um espaço de 15 metros quadrados. Três deles se amontoam em torno do chefe, Jordi, que fala no ouvido de cada um. Sussurra, na verdade. Não o faz porque quer, como também não caminha de propósito com o queixo erguido em direção ao teto. Roca tem distonia cervical, uma doença que afeta o movimento de suas cordas vocais, e isso influencia em sua empatia pelos problemas que os outros sofrem.
Uma batedeira que mistura os ingredientes do chocolate rompe o silêncio assim que entra na cozinha um ex-colega de Roca na escola de hotelaria de Girona. É Oriol Blanes. Eles se abraçam como amigos. Ambos lembram entre sorrisos seu reencontro há um ano, no mesmo Celler, depois de um tempo sem se verem. “Olha como estou”, disse Roca a Blanes. “Eu também tenho meus problemas”, respondeu este, que já havia perdido o olfato. Quando Blanes contou o que estava acontecendo com ele, o caçula dos Roca sentiu empatia por sua situação. E, no El Sentido del Cacao, uma iniciativa realizada com o BBVA, decidiu construir uma fantasia para um grupo de pacientes com alterações de olfato e paladar. Consistiria em oferecer-lhes uma experiência sensorial e gastronômica para que pudessem alcançar algo próximo da sensação do sabor, ao menos um resquício cromático no nariz e na boca, mesmo sem ter os sentidos em pleno funcionamento. “Oriol me dizia que estava vivendo uma tortura, via os outros se deliciando e ele estava impedido. Fica bloqueada uma parte de você que poderia ser considerada espiritual, que você não sabe que está aí, mas está”, conta, com uma voz imperceptível, na Masía, seu refúgio e de seus irmãos junto ao Celler, o melhor restaurante do mundo em 2013 e 2015. O plano era apelar para a memória e os sentidos: “Você pode chegar ao paladar sem tê-lo. Podemos reconstruir a percepção do sabor e do aroma através das lembranças. O olfato está ligado ao cérebro antigo, o cérebro reptiliano. Os humanos deixaram de priorizá-lo há milhares de anos, mas hoje continua sendo fundamental. É um sentido que reserva memória inconsciente: você se lembra de um beijo com sua parceira na praia e você sente o cheiro do mar”. Como as famosas madalenas de Proust, aquelas que a um de seus personagens lembrava, molhadas no chá, a casa de sua infância.
Para chegar a essa memória olfativa, Roca recorreu ao cacau, o ingrediente básico do chocolate, por sua vez alimento icônico do prazer e evocador das lembranças da infância. Com essa chave proustiana, apoiou o trabalho de uma equipe de especialistas científicos e médicos, que submeteram os pacientes a uma série de testes para saber a quais estímulos sensoriais respondiam melhor, se os visuais, auditivos ou cinestésicos, além dos gustativos e olfativos. E a partir daí tentou construir uma experiência culinária de acordo com suas personalidades. “Como um big data humano, para prestar uma homenagem a cada pessoa”, explica Roca, imaginando um futuro não tão distante no qual essa iniciativa possa ser emulada em seu restaurante. Seria uma cozinha personalizada ao extremo, como é nesta ocasião para Oriol Blanes e também para um pequeno grupo de eleitos com distúrbios semelhantes.
Paloma Prada recuperou o olfato, mas alterado: “muitas coisas começaram a cheirar a podre”
Um dia de fim de inverno em um shopping center em Madri. Um fio perfumado sai das lojas, atrai o cliente e se mistura com o aroma indefinido desse tipo de lugar. A caminhada de cinco minutos da porta principal até a saída oposta provoca em Paloma Prada um odor “insuportável”. Um simples resfriado tirou-lhe o olfato durante três meses. Depois o recuperou, mas alterado. Sua doença se chama cacosmia e se traduz em uma distorção dos odores. “De repente, muitas coisas começaram a cheirar a podre. A colônia? Cheirá-la é um martírio. Nada é o que costumava ser: chocolate, flores, fumaça, nada. Você fica perdida. E precisa se acostumar, porque não pode usar um pregador no nariz”.
Como uma maldição, o fedor se transforma em repugnância ao ingerir alimentos — sem parâmetros, dá no mesmo abacaxi ou hambúrguer, sashimi ou morango — e líquidos. “O café agora é uma droga que eu só tomo para funcionar, mas tem um gosto ruim para mim. A mesma coisa acontece com o álcool, e eu gostava muito de cerveja. Agora quase não bebo, às vezes um copo de vinho, mas não tem o gosto que eu conhecia”, diz com uma careta de nojo. Também há uma inversão de sabores para o outro lado com coisas muito específicas: o mel, que ela nunca suportou, agora tem um gosto bom. “E o caviar. Olha só que descoberta”.
Prada acredita que tem sorte porque durante toda a vida trabalhou em um laboratório de química orgânica. “Felizmente não mais, ou morreria em três dias”. Como Blanes, ela diz que vive em preto e branco. “Você se sente desamparada, porque ninguém entende por que isso te muda a vida. Há coisas piores, mas socialmente é horrível”. Para atenuar o problema, ela faz um tratamento farmacológico — pregabalina — que diminui a sensação de desagrado e também faz uma reabilitação olfativa: todas as tardes abre e cheira um kit com 40 frasquinhos de aroma até tentar adivinhar o que é cada um. Depois de vários meses, começa a distingui-los a duras penas.
Para alguns, a medicina é a solução e, para outros, paradoxalmente, a condenação. Isso acontece com pacientes com câncer. A quimioterapia é responsável por uma das formas mais comuns de distúrbio do paladar: a disgeusia. Afeta as papilas gustativas e sua consequência mais comum é o paciente sentir um sabor metálico em tudo que come. É o caso de Susana Quevedo: foi diagnosticada com câncer de mama em fase 3 em 30 de outubro. Nove dias depois, teve sua primeira sessão de quimioterapia e, desde então, tudo tem gosto de sal. Agora ela está na segunda fase do tratamento e seu paladar está reduzido, mas não é suficiente: “Comer coisas como presunto eu nem penso, mas ainda pior é o doce, que é salgado para mim. É horroroso”, diz. A disgeusia provocada pela quimioterapia é mais conhecida do que outras, e existem casos públicos famosos, como o do cozinheiro de elite Grant Achatz.
Assim como os anósmicos ou os cacósmicos, os que sofrem de disgeusia vivem em constante estado de alerta, tristeza e insegurança: “É frustrante”, resume Quevedo. Prada concorda que o pior é a memória dos sabores: “Se me apagassem da memória o cheiro do chocolate ou do iogurte, seria outra coisa, mas eu me lembro perfeitamente deles”. Por isso, ambas também aceitaram o desafio de Jordi Roca e do cacau. O resultado do projeto, com base nos dados dos comensais, foi encorajador, mas desigual. A experiência ainda fazia Prada tremer semanas depois: primeiro ela foi para uma sala com um palco no qual havia uma tela com uma chuva de estrelas e um fundo de música de piano. Roca lhe trouxe uma tigela com chocolate líquido — sua recordação da infância — e uma sobremesa com vários tipos de chocolate com diferentes temperaturas e texturas: “As lágrimas quase saltaram porque o sabor me pareceu verdadeiro. Depois voltei à realidade e não provei novamente. Mas guardo essa lembrança”. Quevedo experimentou um prato em que Roca quis emular a massa madre, e isso a impressionou porque seus bisavós tinham um forno de pão. E levou-lhe uma preparação com cacau da Costa do Marfim, terra de origem de seu filho adotivo. “Quando eu provei foi a gota d’água, era uma sobremesa semifria com cacau. Tudo junto, com a música e o clima, me fez feliz pela primeira vez em cinco meses. Foi uma explosão tão emocionante que eu não conseguia parar de chorar”, conta. Oriol Blanes encontrou uma mesa iluminada com luz tênue e um cartão que dizia: “O gosto é experimentar momentos, viajar pelos sentidos, lembrar-se das tardes entre o pão e a sobremesa, distribuir chocolate aos amigos. O gosto é ser um cozinheiro que não precisa do gosto”. Seu amigo lhe havia preparado várias elaborações diferentes de chocolate, coroadas por um caramelo que parecia flutuar no ar até pousar no prato: pura emoção, mas não conseguiu que recuperasse o sabor. Em vez disso, lhe serviu para entender a complexidade sensorial. Ele não se resigna a viver sem paladar e espera voltar a cheirar um ouriço do mar, degustar um chocolate ou provar um molho: “Eu afirmo agora ter olfato, mesmo que seja apenas em alguns dias esporádicos por ano o resto da vida”.
Fonte: El País Brasil