No cais do Vieux-Port de Marselha, operários estão dando os retoques finais na Ombrière, projetada por Norman Foster. A construção vai oferecer abrigo contra o sol nos verões escaldantes e contra a chuva no inverno, e se parece um pouco com um abrigo de ponto de ônibus ilhado no meio de uma área de pedestres.
É só quando você chega mais perto que começa a perceber que a edificação oferece uma dimensão adicional: seu teto alto, de aço polido, reflete uma cena de balsas e barcos de pesca, imagens invertidas que também mostram pescadores vendendo em bancadas de madeira os peixes que acabam de apanhar. A Ombrière é um abrigo que também oferece uma imagem caleidoscópica da vida do porto.
Vistos de perto (e sem inversão), os pescadores têm aparência bem rústica e, pelo que percebo xeretando suas conversas, o vocabulário é igualmente rústico. Os peixes que eles estão oferecendo tampouco são refinados – congros, tamboris, cantarilhos – mas serão com certeza saborosos. E é por isso que o chef Christian Buffa está caminhando entre eles, pechinchando e trocando piadas com as mulheres dos pescadores.
Buffa, nascido e criado em Marselha, é um menino de rua que virou restaurateur, e o Miramar, seu restaurante, também localizado na região do cais do Vieux-Port, é o baluarte da bouillabaisse, a deliciosa sopa de peixe inventada por aqui. O preço do prato no Miramar é de dolorosos 118 euros, na porção para dois, e Buffa resmunga quando digo que vi anúncios oferecendo bouillabaisse por 20 euros.
“Não é uma verdadeira bouillabaisse. Uma verdadeira bouillabaisse usa ao menos quatro tipos de peixe, e a nossa usa seis – e isso significa pelo menos três quilos de cantarilhos, tamboris, peixe-galo, salmonetes. Está vendo o preço? O quilo custa 30 euros”. Não é difícil fazer a conta. Assim, o que o pessoal coloca nas versões baratas da bouillabaisse? Ele dá de ombros – carne de cavalo marinho, quem sabe?
Como muitos outros portos, a segunda maior cidade da França (um título disputado por Lyon) vem lutando contra sua velha imagem. E o problema vai bem além de bouillabaisses adulteradas: a cidade do declínio e queda do poderio colonial francês era conhecida pelo comércio de drogas, e pela violência associada a ele.
Enquanto Nice e Cannes, na mesma costa, foram construídas tendo em mente o lazer e o turismo, Marselha é como uma versão de Paris, com a dureza de uma grande cidade como que transplantada para a costa, e uma população que recebeu larga mistura de imigrantes da África do Norte.
Como cidade turística, não é um destino para todos os gostos. Mas os líderes municipais esperam mudar essa situação, agora que Marselha é uma das duas capitais da cultura da Europa em 2013 (na companhia de Korsice, Eslováquia). E por que não? Afinal, estamos falando da cidade cuja luz inspirou impressionistas como Paul Cézanne, e cuja prisão em uma ilha próxima ao porto (o Château d’If) inspirou Alexandre Dumas a escrever “O Conde de Monte Cristo”.
A Ombrière de lorde Foster é apenas uma pequena parte de um quadro muito mais amplo – o Euromediterranée, maior projeto de renovação urbana em curso no sul da Europa, com orçamento de sete bilhões de libras. A maior parte do dinheiro está sendo investida na região da costa, em centros culturais, edifícios de apartamentos e escritórios e novos shopping centers – construções que em alguns casos mal foram iniciadas. Mas o foco do ano da cultura é o Vieux-Port, o ponto em que Marselha foi fundada, em 600 a.C., e que agora está renascendo como a sala de recepção da cidade.
Antes, o porto servia de estacionamento a iates, e seu espaço de circulação ficava sufocado por uma via expressa. Sob o plano de reforma urbana, o enervante tráfego foi desviado, as cercas foram derrubadas, a circulação de pedestres foi estimulada e os velhos fortes da cidade ganharam vida nova.
Um desses fortes protege a entrada do porto em seu extremo sul, e fica ao lado do Pharo, que no passado serviu como residência de Napoleão. Agora, o palácio se tornou um centro de conferências, e os baluartes superiores do velho forte Saint Nicholas, construído no século 17 para oprimir a agitada população da cidade, agora servem de local de passeio a casais apaixonados que querem contemplar o pôr do sol.
Entre as duas velhas construções fica o Sofitel Vieux-Port, um hotel de cinco estrelas que há muito serve o porto, e Marselha, como seu melhor endereço de hospedagem. É um lugar repleto de estilo, com um restaurante no pavimento mais alto – Les Trois Forts – que se parece um pouco com a ponte de comando de um navio. Mas o status do Sofitel está prestes a ser desafiado pela inauguração do Intercontinental Hotel Dieu, no mês que vem, outro estabelecimento cinco estrelas, mas este construído em uma edificação histórica mais grandiosa e carismática, do lado norte do porto, com um spa, restaurantes finos e 194 quartos. A guerra de preços entre os dois pode resultar em pechinchas no topo da escala de conforto da hotelaria marselhesa.
Os hotéis mais baratos ficam em uma área menos nobre, que também abriga o mercado de peixe, a Ombrière e o serviço de turismo. É de lá que saem as balsas de passageiros que levam às ilhas – um trajeto de 20 minutos – e aos Calanques, uma série de recortes abruptos no traçado da costa, ladeados por encostas calcárias.
Bouillabaisse de baixo preço pode ser encontrada no denso labirinto de ruas de pedestres localizadas no canto do porto mais próximo à Ombrière, onde jantares de três pratos para turistas saem por apenas 15 euros. O lado norte do porto abriga restaurantes mais sofisticados, como o Miramar, de Buffa, e o belo Hotel de Ville, ao lado do qual foi recentemente inaugurado o Pavillon M, o centro temporário de reservas e exposições para o ano da cultura.
Boa parte do investimento do ano foi dedicada à terceira e mais impressionante das fortificações, o forte Saint Jean, do século 17, no passado um quartel da Legião Estrangeira. O forte foi remodelado para se integrar a duas edificações mais novas definidas por siglas horríveis: O Muceum (museu das civilizações da Europa e do Mediterrâneo) e o Cerem (centro regional do Mediterrâneo).
O Muceum é o maior desses novos projetos, um bloco cercado de um fosso e recoberto por uma estrutura de concreto vazado. Com inauguração em junho, ele servirá como “museu nacional” de Marselha. O Cerem, ao lado, enquanto isso, sediará exposições e conferências sobre o Mediterrâneo, e serve de ponta de lança à candidatura de Marselha ao posto de cidade mais importante do Mediterrâneo -a única outra candidata séria é Barcelona.
Le Panier, o bairro mais antigo de Marselha e no passado a maior concentração de bordéis do Mediterrâneo, fica por trás dos novos museus. Como o Barri Gòtic de Barcelona, Le Panier é um labirinto de ruelas ligadas por escadas, que conduzem a duas pequenas praças repletas de cafés com mesas na calçada.
A região abriga uma das mais interessantes opções de acomodação de Marselha, o Au Vieux Panier, uma combinação entre pousada e instalação de arte operada pela simpática Jessica Venediger (que é meio inglesa). A cada ano ela realiza um concurso entre jovens artistas, e o vencedor cria o visual para um dos quartos da pousada, com resultados como o Quarto do Pânico, que é meio branco e meio recoberto por pichações em neon.
O terraço no topo da pousada, com a vista espetacular dos telhados do bairro e das águas do Mediterrâneo mais além mostra por que impressionistas como Cézanne sentiam tamanho entusiasmo por Marselha.
Mas a vista mais dramática de todo o panorama – o mar, o céu, a cidade, as ilhas, as montanhas e os novos projetos – pode ser encontrada no equivalente marselhês do Sacré-Coeur, construído no topo de uma colina do outro lado do Vieux-Port. É a basílica de Notre Dame de la Garde, mais conhecida como “a boa mãe”, pois é a igreja a que os locais acorrem com seus medos e suas esperanças. O interior de delicados mosaicos conta com inúmeros ex-votos – placas, pinturas e até modelos de barcos, em memória de embarcações perdidas e vidas salvas.
Se a Ombrière, o ano da cultura e o dinheiro do Euromediterranée conseguirem reverter a reputação de Marselha como cidade violenta, será aqui que as pessoas virão agradecer.
Para mais informações, ver www.rendezvousenfrance.com e www.marseille-tourisme.com.
Tradução de Paulo Migliacci
Fonte: FOLHA Turismo