Conhecido como ‘Velho Sóbrio’, yakamein é uma cura popular para a ressaca — Foto: Amanda Ruggeri
Mas o que mais importava naquele momento em Nova Orleans, cidade sulista dos Estados Unidos, era um copo de papel que eu segurava. Não, não era o “furacão” – aquele coquetel de rum extremamente doce que todo turista beberá com canudo pelo menos uma vez durante a visita ao local. Era o oposto: um remédio carinhosamente apelidado de “Velho Sóbrio”, que dizem curar o pior dos sintomas do excesso de diversão: a ressaca.
Apesar da forma como me foi servido, não é uma bebida. Trata-se de uma sopa – ou algo parecido. Mais um espaguete que um caldo, essa porção era potente e estimulante, com uma insana mistura de molhos picantes de Sriracha, Crystal e Tabasco, e acréscimo de suculentos cubos de carne de jacaré. Sobre esse último item, a moradora Linda Green, mais conhecida como senhora Linda ou a “Lady do Yakamein”, explica melhor: “Ele parece um personagem malvado, mas é um belo e delicioso pedaço de carne”.
Yakamein (pronunciado como ‘Yah-kah-mém’) é um prato sobre o qual, se você não foi nascido e criado em Nova Orleans, certamente nunca ouviu falar. Mas se provar, com a mesma certeza, não consegue mais viver sem.
Sim, parece simples para se fazer em casa – especialmente porque a versão mais comum usa carne bovina, uma alternativa útil se você, como eu, não tem acesso fácil a jacaré (algo que surpreendeu a senhora Linda quando lhe contei). Para prepará-lo, ferva sobras de carne (com ponto extra em autenticidade se for do assado preparado para a família e amigos no domingo). Cozinhe-as com sal, pimenta preta e alho em pó. Coloque o espaguete cozido, pedaços tenros de carne, cebola verde picada e um ovo cozido em uma tigela ou copo. Despeje o caldo, mexa e deixe os sabores se fundirem. Adicione mais molho picante se quiser.
Mas como qualquer prato super local, o yakamein quase não faz sentido fora de Nova Orleans. E não apenas porque é tanto resposta quanto o antídoto para a cultura de diversão (e de beber sem parar) da cidade. É também porque seus sabores são resultado da multiculturalidade da Big Easy, e o estilo de tomá-lo no copo traduz a calorosa despretensão da cidade.
O status lendário do prato também capitaliza, em parte, as crenças da cidade em magia negra – pois “Velho Sóbrio” é mais do que um nome simpático.
“Às vezes, você sabe, você está fora de si. Mas quando toma o yakamein, acredite ou não, você volta à vida”, disse Linda. “Minha filha sai com suas amigas e vem de manhã: ‘Eu preciso de um yakamein. Eu preciso de um yakamein’. E eu tenho que ir buscá-lo.”
Como a própria Nova Orleans, o yakamein é uma miscelânea e, por isso, sua origem é difícil de se investigar. “Ninguém sabe exatamente de onde ele veio”, comentou o morador John Bel, um dos muitos chefs que serve o yakamein, nesse caso em seu sofisticado restaurante Meauxbar.
Origem internacional
Dizem que o prato teria surgido nos anos de 1900 quando imigrantes chineses e afro-americanos misturaram casas, cozinhas e ingredientes. Já outros acreditam que ele foi inventado depois da Segunda Guerra Mundial, ou talvez das guerras do Vietnã e da Coreia, de onde soldados voltaram com memórias da sopa de macarrão asiática.
Embora tenha origens internacionais, poucos conhecem o yakamein fora de Nova Orleans – com exceção dos obstinados foodies ou fãs do programa de TV “Sem Reserva”, do chef Anthony Bourdain. Quando comentei que escrevia um artigo sobre o yakamein a moradores de Baton Rouge, que fica a apenas 130 quilômetros de Nova Orleans, eles não tinham ideia do que estava falando.
“Poucos visitantes o conhecem. Algumas pessoas, quando são foodies ou estão em Nova Orleans especialmente para comer, já ouviram falar, mas não sabem exatamente o que é”, disse John Bel.
Carinhosamente conhecida como a ‘Lady do Yakamein’, Linda Green prepara o prato na parte de trás de sua pick-up em eventos — Foto: Amanda Ruggeri
O que todos concordam é que, independentemente de quem ou quando começou a ser feito, o yakamein surgiu da cozinha das famílias e das ruas.
Além de ser preparado em casa, o prato era vendido do lado de fora de bares de jazz e ao lado da chamada “segunda linha” – desfiles que reúnem pessoas dançando e cantando e que surgiram de homenagens funerárias.
Isso, associado à despretensão que toma conta de Nova Orleans, também explica a etiqueta para comer o yakamein: a forma mais autêntica de apreciá-lo é em uma embalagem para viagem. Colheres não apenas são desnecessárias como um obstáculo.
A versão de Bel do yakamein, servido no Meauxbar, tem raízes domésticas. Uma de suas cozinheiras costumava levá-lo para seu almoço. Logo, ela começou a dividi-lo informalmente com a equipe. Depois, a prepará-lo para as refeições da equipe. Não demorou muito até que a receita chegasse ao menu e se tornasse um dos favoritos dos clientes.
O yakamein do Meauxbar é bom: com o umami do molho de soja, bastante aipo e um pouco de molho de Worcestershire, ele tem mais caldo que a média. (Em parte por causa disso, em parte por causa do ambiente sofisticado do bistrô, eu usei uma colher desta vez – ou tentei).
Mas quando penso no yakamein de Nova Orleans, a versão da senhora Linda é a que me vem à cabeça. Não estou sozinha. Linda é famosa por distribuir milhares de copos de yakamein na traseira de sua caminhonete durante a “segunda linha”, no mercado francês, no festival de jazz e no Mardi Gras. (Um conselho: se você perguntar à senhora Linda quantas porções ela vende em cada festival de jazz, não faça isso com a boca cheia).
“Meu Deus! São muitos. Muitos. Talvez mais de 25 mil?”, disse ela me fazendo engasgar. Ela faz de tudo: etouffee, gumbo, jambalaya e beignets. Mas a receita que ela aprendeu com sua mãe, que por sua vez aprendeu com a mãe dela, é a do yakamein.
A receita original de Linda usa carne bovina. Mas não só isso. “Eu faço jacaré. Eu faço lagosta. Eu faço ostras. Eu faço carne de porco”, disse Linda, que já fez yakamein de sushi e frango crocante e até Bloody Marys com sabor de yakamein. Há também uma versão vegetariana.
Ingredientes secretos
O complexo e rico caldo de Linda usa dois ingredientes especiais. O primeiro pode soar um clichê de marketing, mas ela acredita tanto nisso que é difícil não ser persuadida: “Eu coloco muito amor na minha culinária. Muito mesmo. Sim, eu coloco”. Sobre o segundo (que ela deu a pista de ser na verdade uma mistura de ingredientes), herdado das receitas de sua mãe e avó, ela jurou segredo.
Qualquer que seja seu truque, o resultado é óbvio. “É bom”, confirmou Linda logo após eu tomar o primeiro gole com um olhar de feliz surpresa. “Às vezes eu tomo yakamein e me pergunto: ‘Meu Deus, quem fez isso? Isso é tão bom, quem fez isso!” Quem fez, é claro, foi a própria Linda.
Durante a conversa com Linda no Bywater Bakery – único lugar onde é possível encontrar regularmente seu yakamein -, o telefone toca. “Hey, baby”, disse ela. “Um yakamein? Ok. Estou ocupada agora, querido. Estou ocupada agora, mas estarei em casa em uma hora. Peça para alguém vir buscá-lo, ok?”
“Um dos seus filhos?”, perguntei com um sorriso. “Ah, não”, respondeu Linda. “Não sei quem era.”
Isso acontece o tempo todo. As pessoas arrumam o número de Linda e ligam quando precisam de yakamein. Ela costumava entregá-los, mas não faz mais isso. Agora, o cliente faminto vai buscá-lo. E ela não pedirá que paguem. “Ah, Amanda”, disse. “Esse é meu problema”.
O telefone da senhora Linda toca com mais frequência aos domingos.
Acontece que a crença nos efeitos milagrosos do yakamein é mais do que um ato de fé. Em uma conferência há alguns anos, o cientista de alimentos Alyson E Mitchell informou que, de fato, o yakamein pode ajudar a curar a ressaca.
Os ovos têm cisteína, um aminoácido que ajuda a eliminar o acetaldeído (um dos subprodutos tóxicos do álcool). A carne gordurosa diminui a absorção de álcool, o que torna o yakamein uma boa escolha também antes de sair à noite. O caldo salgado repõe o sódio perdido durante as idas ao banheiro induzidas pelo álcool; e ainda te encoraja a beber mais água, combatendo a desidratação.
“Pode ser um bom exemplo de ciência intuitiva: um remédio eficaz, com a base científica revelada apenas anos depois”, disse Mitchell.
Depois da entrevista, desço a rua Bourbon. Ainda não é noite, mas a rua tem aquela sensação surrealmente imutável de uma festa que nunca termina: às 17h ou às 5h, há luzes neon e música. Algumas crianças afro-americanas encantam uma multidão, tocando uma batida eletrônica em latas de tinta. Um grupo de mulheres brancas de 20 e poucos anos desce a rua. Um casal idoso passeia com bengalas e contas de Mardi Gras enroladas no pescoço.
A noite é jovem. As opções estão abertas. Um bar de jazz ou um happy hour com ostras? Ainda não sei, mas uma coisa é certa: amanhã vou buscar um yakamein.
Fonte: BBC