Tocar o gelo azul do glaciar Engabreen, navegar pelo poderoso maelstrom de Saltstraumen e admirar as hipnóticas auroras boreais. Uma aventura pelas paisagens do norte de Noruega que inspiraram o segundo filme da saga Disney
Um turista diante do gelo azul do glaciar Svartisen, ao norte de Noruega.CHRISTOPHE BOISVIEUX (GETTY)
Tomine tem 10 anos e uma trança quase branca de tão loira. Retira o capuz da longa capa bordada e canta com segurança: “La den gå, la den gå…”. Em norueguês, Let It Go. Deixe ir.
A menina canta dentro de uma cabana, em uma floresta vermelha e laranja de bordos e bétulas, às margens de um lago cristalino, em frente a um belo glaciar. Entre seu público, uma dezena de jornalistas internacionais e Peter del Vecho, vencedor de um Oscar e produtor de Frozen (2013), o filme de maior sucesso de bilheteria da história até que a princesa de gelo foi destronada nesse ano pela nova versão do Rei Leão. O executivo da Disney sorri pela que deve ser a milionésima versão de Let It Go que ouve. Está promovendo Frozen 2, que estreia 27 de novembro no Brasil, para o que recria com a imprensa convidada parte da viagem de documentação feita pela equipe quando preparava a sequência.
“Durante duas ou três semanas vimos glaciares, fiordes, cataratas e as cores do outono evocadas pela paleta de cores do filme para frisar que Anna e Elsa, nossas protagonistas, amadureceram…”, explica o cineasta. “A paisagem nos inspirou, mas não tentamos recriar lugares específicos”, previne aos que procuram paralelismos. “Não queríamos ser realistas, afinal a heroína do filme lança gelo com as mãos e há um boneco de gelo falante! Ainda assim, é importante que os detalhes sejam críveis para que as pessoas sintam que o lugar que veem na tela realmente existe”.
O sucesso do primeiro filme trouxe à Noruega uma onda de entusiastas. Entre 2014 e 2017 as visitas ao país cresceram em números que chegam a 30% por ano, ainda que o fator Frozen tenha recebido a companhia de muitos outros como a melhora da economia global e, principalmente, os voos diretos e baratos a vários destinos noruegueses.
O cenário perfeito da província de Nordland, ao norte do país, não precisa de um filtro de Hollywood para seduzir. O avô de Tomine, Steinar Johansen, há décadas recebe viajantes em sua fazenda de Svartisen, onde abriu um café em 1985. “Nessa época chegavam principalmente alemães, de barco”, diz, “hoje vem muito mais gente pela estrada”. Não é de se estranhar: da capital provincial, Bodø, se chega a Svartisen pela rodovia costeira (Fv17). A viagem é impressionante: a água perfeitamente plana dos fiordes reflete as enormes montanhas de picos nevados, as florestas vão do verde intenso dos pinheiros ao fogo das folhas caducas, e, salpicadas por todas as partes, aparecem pitorescas casinhas de madeira — brancas, vermelhas, mostarda —, algumas com grama no telhado. Até as áreas de descanso são divinas. Em Ureddplassen está o que foi chamado de “o banheiro público mais bonito do mundo”. O banheiro de cimento e vidro polido coroa um mirante minimalista com bancos de mármore rosa, seu formato lembra um chapéu ou uma cobra comendo um elefante, dependendo se você leu ou não O Pequeno Príncipe.
Após duas horas de estrada panorâmica, é preciso andar 10 minutos de barco para atracar ao lado da fazenda de Steinar: “Daqui os turistas praticam caminhada, sobem ao glaciar, tiram selfies…”. Para “dar-lhes algo mais” Steinar cria há quatro temporadas vários alces em sua fazenda de gado. A crença popular diz que beijar um alce torna você irresistível, de modo que no verão vários visitantes vêm tentar a sorte, seduzindo os dóceis Embla, Froya e Arnljot com ramos de salgueiro. “No inverno só ficamos eu e minha mulher sentados na varanda… Quando o lago congela, podemos ficar semanas sem sair de casa” sorri Steinar com seus olhos cor de glaciar. Em 75 anos só viveu três em outro lugar que não seja esse. “Você se acostuma”, diz, “o mundo muda ao seu redor e você não percebe”. Com essas palavras, guia a expedição ao glaciar Engabreen, um dos braços do Svartisen.
Sete metros acima do nível do mar, é o glaciar de menor altitude da Europa continental. É surpreendentemente simples chegar ao gelo. Se o sol de outono brilha, e algumas vezes acontece – vamos de moletom no final de setembro –, a travessia é uma divertida caminhada de duas horas, com uma primeira parte bem fácil e uma segunda um tanto mais agreste em que é preciso escalar um pouco. Após o desnível, se chega ao imenso azul da língua de gelo e seu misterioso crepitar. As gélidas reentrâncias e pináculos são o refúgio perfeito para qualquer princesa que queira se esconder do mundo. “Você me perguntava porque gosto de viver aqui”, diz Steinar abrindo os braços diante do deslumbrante cenário: “Por isso”.
Paralelo 67
“Temos um encontro com Lady Aurora, mas é uma dama esquiva”. Henry Johnsen, guia de aventuras árticas, aquece o ambiente criando expectativa. A noite fechada e sem nuvens na praia de Langesanden está fresca. Fresca é modo de dizer. Estamos no paralelo 67 Norte. Acima estão somente a Groenlândia, Lapônia, Alasca… “O paralelo 67 Sul está em plena Antártida”, diz Henry, “de modo que, pela distância que estamos do Equador, esse frio não é tão forte”. O que faz com que esse lugar não seja um campo gelado é a corrente do golfo do México. O microclima permite que na ilha de Sandhornøya existam montanhas, árvores, casinhas de madeira, um camping… Henry nasceu na ilha quando ainda não existia a ponte de 374 metros que a une à terra firme. Nasceu, conta, em um barquinho enquanto sua mãe tentava chegar à costa, mas tem cheiro de lenda como quase tudo por aqui. Por exemplo: para os samis, povo índigena que vive no norte da Europa, a aurora boreal é “a luz que se pode ouvir” (ainda que a ciência diga que não, esclarece o guia); para os vikings, era a ponte atravessada pelos deuses para ver os mortais. No universo Frozen são os trolls que a invocam. Na verdade, são partículas solares carregadas que se chocam com o campo magnético da Terra. Quando a luminescência verde no céu começa sua dança, dá na mesma que você saiba a explicação científica: é magia.
Na manhã seguinte, Henry percorre o fiorde de Salt em um barco zodiac com uma dúzia de passageiros vestidos em roupas impermeáveis e óculos de esqui. Vão passar sobre o maelstrom de Saltstraumen, a corrente de marés mais poderosa do mundo e uma grande atração turística. Na tarde anterior os passageiros viram uma trepidante sequência de Frozen 2 em que Elsa, meio afogada, luta pela vida no mar do Norte contra um imponente cavalo de água. Uma batalha angustiante. Justamente o que precisamos antes de cavalgar sobre os violentos vórtices do fiorde em uma lancha a motor. O cavalo do filme é inspirado no nøkke do folclore escandinavo. Há várias versões sobre ele, mas o produtor da Disney ficou com uma em que o espírito aquático se oferece ao viajante para cruzar um rio: se você é honesto, deixa que monte em seu lombo; se não é, te afoga. Muito tranquilizador.
Sobre a zodiac, Henry se esmera em explicar a geologia do fiorde – formado há 16.000 anos pelo desgelo – e das montanhas que cercam o antigo vale glaciar. “Orogenia caledoniana”, “há 430 milhões de anos”, “choques de continentes”, “Pangeia…”. É difícil se concentrar diante da promessa de redemoinhos de 10 metros de diâmetro e 5 de profundidade que giram a uma velocidade de 22 nós (40 quilômetros por hora). São provocados pelo desnível entre o mar e o fiorde. Duas vezes por dia, com as marés, 400 milhões de metros cúbicos de água passam por esse estreito de 150 metros de largura pelo qual a lancha está prestes a planar. Em Uma Descida ao Maelström, Edgar Allan Poe escreveu: “Comecei a meditar o quão magnífico era morrer dessa forma”. Não vamos dramatizar. A aventura é emocionante — a zodiac dança e salta com a corrente —, mas não perigosa.
Em Frozen 2 as irmãs abandonam o simpático povoado de Arendelle para viajar ao desconhecido norte onde precisam enfrentar os elementos – água, ar, terra, fogo –, que se comportam como personagens com vontade própria. “O filme coloca a questão: há magia na natureza?”, diz Del Vecho. “Claro que há, até a mudança das estações é mágica. Queríamos introduzir a ideia de que a natureza está viva, e o eterno assunto de que te dirá o que deve fazer, se você esperar o tempo necessário para escutá-la”. Os samis sabem muito sobre escutar a natureza.
“Por respeito e por agradecimento à rena, você precisa comer toda a carne do prato; se quiser pode deixar as batatas”. Elin Christina e Anne Oskal, de 23 e 30 anos, sorriem, mas não estão brincando. São samis, o povo originário da Lapônia, do qual hoje fazem parte por volta de 100.000 pessoas espalhadas principalmente entre a Finlândia, Suécia, Rússia e Noruega, onde vivem por volta de 60.000. No parque nacional Saltfjellet-Svartisen (a duas horas de Bodø) se conservam muitos restos arqueológicos de assentamentos samis.
A família Oskal, como seus ancestrais, se dedica ao pastoreio de renas que seguem em suas migrações. “Usamos tudo do animal, a carne, a pele, as unhas, os chifres…, até temos uma de mascote, Angel, que é mais divertida do que Sven [a rena de Frozen]”, dizem as irmãs acariciando o animal, vestidas com o colorido gakti que usam para ocasiões especiais. No Instagram de Elin é possível vê-la com roupa de montanha, segurando uma rena enquanto a marca com o tradicional corte à faca da orelha. São samis do século XXI.
O pastoreio da rena
O centro de interpretação dos parques nacionais de Nordland (em Storjord) presta homenagem a essa cultura: há reconstruções de seus goahtis e lavvus (cabanas e tendas de campanha com esqueletos de madeira e coberturas de barro e pele) e se explica como, graças ao artista e ativista Per Adde (um nonagenário que vive isolado nessas montanhas), se conseguiu, no final da década de 1980, salvar o pastoreio da rena ampliando a proteção de suas áreas migratórias.
Mas nem sempre foi assim. Especialmente no século XIX e começo do XX, os direitos do povo sami estiveram ameaçados. “Todos os países nórdicos tentaram nos assimilar, estivemos prestes a perder nossa língua autóctone”, lamenta-se Anne Lajla Utsi, diretora do Instituto de Cinema Sami. Ela é um dos seis consultores samis com os quais a Disney trabalhou para Frozen 2. O Parlamento sami pediu para que fosse criado um grupo chamado Verddet (amizade). Ocorreram visitas na Noruega e nos estúdios de Los Angeles. Os animadores aprenderam detalhes sobre como deveriam ser os trajes e os copos de madeira (guksi) utilizados pelo Northaldra, o povo fictício inspirado nos sami que mora na floresta encantada do filme. Foram corrigidos detalhes sutis como a forma de sentar-se no chão dos personagens: tinham sido desenhados com as pernas cruzadas, mas os pastores de rena sentam-se de joelhos, sobre seus calcanhares, para não molhar o traseiro com a neve. “Os detalhes são importantes”, diz a porta-voz sami, “muitas vezes nossa imagem foi explorada sendo retirada de lugar, com deboches e apropriando-se de coisas sagradas para nós como o xamanismo… Quando vemos que alguém tem interesse sincero em nos representar com respeito, nos sentimos seguros”.
Como toque final a essa colaboração, o estúdio apoiará a dublagem ao sami de Frozen 2. Será a primeira grande estreia nessa milenar língua que esteve, há pouco tempo, prestes a desaparecer. Na trilha sonora há uma música que promete ser a próxima Let It Go. É chamada Into the Unknown (literalmente, rumo ao desconhecido). De maneira apaixonada a princesa de gelo expressa seu desejo de ir além. De se lançar à aventura para encontrar a si mesma nos locais mágicos inspirados pela longínqua e misteriosa Nordland. E aqui, as crianças samis poderão cantá-la em seu próprio idioma.
BODØ, CAPITAL CULTURAL DE 2024
Bodø, a capital da província de Nordland, será em 2024 Capital Europeia da Cultura. É a primeira cidade ao norte do círculo ártico que recebe o título e a terceira cidade norueguesa a ostentá-lo, após Bergen (2000) e Stavanger (2008.) E isso apesar de uma candidatura acidentada já que não teve o apoio do Governo nacional, que considerava que não estava pronta para se candidatar.
Ainda que a principal atração da região seja a deslumbrante natureza (glaciares, fiordes, auroras boreais, avistamento de águias marinhas…), Bodø (50.000 habitantes) tem um porto encantador, dois festivais de música e outro de arte de rua (suas ruas possuem enormes grafites). Tem uma reluzente livraria e uma sala de shows que poderá abrigar muitos dos eventos de seu novo título, e museus como o da aviação.
A candidatura de Bodø também é uma vitória da cultura sami, já que sua proposta inclui um plano de promoção da língua autóctone integrando-a no dia a dia da cidade.
Entre a variada oferta gastronômica (incluindo um restaurante da Idade da Pedra, em que garçons pré-históricos assam linguados nas brasas de uma grande fogueira), um conselho: não vá embora sem provar os bombons da Craig Alibone. Autênticas joias à vista e ao paladar.
Fonte: EL PAIS BRASIL