Bayard Boiteux

Voando sobre rodas, Fittipaldi descobriu o mundo

Por dever de ofício, Emerson Fittipaldi se tornou um viajante. Duas vezes campeão mundial de F-1, em 1972 e 1974, e uma vez de F-Indy, em 1989, ele desde logo teve que peregrinar por países e, muitas vezes, viver longe do Brasil.

O piloto recebeu a Folha num escritório forrado de diplomas, fotos e troféus –onde também residem dois bólidos da equipe Copersucar-Fittipaldi– para revelar memórias afetivas do automobilismo, do antigomobilismo, de suas viagens e reminiscências.

Falou das origens italianas da família paterna, da mãe, Juzy, que era russa e não gostava que ele corresse de automóvel, de acidentes e percalços no esporte e na vida.

Por mais de três horas, Emerson falou a Silvio Cioffi, editor de Turismo da Folha, ao repórter Daniel Médici e ao antigomobilista Julio Alberto Penteado, que mostrou ao corredor fotos inéditas clicadas pelo engenheiro João Rodrigues e que mostram o primeiro acidente do piloto, num Fórmula Vê, na descampada pista de Interlagos do início dos anos 1960.

Acompanhe a narrativa das memórias de piloto viajante e confira imagens de época, filmes do YouTube e extensa iconografia sobre sua carreira.

Memórias da Inglaterra
No Brasil, comecei a correr em 65, aos 17. Fui para a Inglaterra pela primeira vez em 1969, quando tinha 22 anos.
E falando em histórias e em Inglaterra, por coincidência, recentemente fiz uma coisa que há anos que eu não fazia. Eu estava em Londres e fui convidado para os 60 anos da Lotus.
Na terça de manhã, o motorista me pegou em Londres e me levou para Norwich, lá na fábrica. A Lotus nova, que é espetacular, está fazendo carros arrojados _e aí eu fui ver a Hazel Chapman, a mulher do Colin [Chapman (1928-1982), criador da Lotus, foi o primeiro chefe de equipe de Emerson na F-1 no início dos anos 1970], e seu filho, Clive.
Em Norwich, está em curso um projeto muito interessante do Danny Bahar, que saiu da Ferrari, e, aliando a um grupo da Malásia, comprou a Lotus e está refazendo a companhia. Na ocasião, estavam lá dez engenheiros que foram da Ferrari, todo mundo falando italiano!
Vou muito à Inglaterra por causa do automobilismo: o coração do automobilismo de competição mundial é o Reino Unido.
A primeira vez que fui para lá, no início de carreira, fui com o Gerry Cunningham [introdutor da fibra de vidro no Brasil, com Donald Pacey].
Aterrissamos no aeroporto de Gatwick, dormimos no apartamento do tio dele, e no sábado, ele me levou para comprar o Fórmula Ford que eu tinha o dinheiro certinho para comprar.
E, no dia seguinte de manhã, ele pegou emprestado do tio um Mini Cooper, daqueles antigos, e fomos de Londres até o circuito de Snetterton.
Quando cheguei, fazia muito frio, porque era fim de fevereiro. Entrei no paddock e tinha um cara acelerando o motor –fiquei arrepiado.
E falei: “Nossa! Que mundo!”. Lá, eles têm várias categorias, muito mais do que no Brasil. O automobilismo já era muito divulgado, os carros eram lindos. Fiquei louco com o que o Gerry estava me mostrando.
No dia seguinte, de manhã, a gente foi encontrar o Frank Williams, que era o revendedor da Titan, que era o melhor Fórmula Ford, o carro que eu queria comprar para correr.
Aí, junto do Gerry Cunningham, abri meu portfólio, falei que corri na Fórmula Vê, no Brasil, nos Fitti-Porsche.
Mas eu não falava quase nada em inglês e o Gerry me representou: “O Emerson foi campeão brasileiro de Fórmula Vê, de kart…”. O Frank Williams [fundador da equipe Williams da F-1] olhou, olhou, olhou assim para o Gerry e falou: “Eu não sabia que tinha corrida no Brasil!”. Os ingleses eram mais desligados do Brasil.
O Frank Williams então disse: “Não tenho o Titan, só vou ter daqui um mês e meio”. Como eu queria correr logo, falei: “Gerry, então vamos procurar outro carro, vamos tentar um Merlyn, que é um carro bom”.

Diabólico bólido amarelo
Fomos então na Merlyn, que não era muito longe dali, e entramos no showroom. Tinha um Merlyn amarelo e o dono da fábrica nos recebeu. Falou que um cara havia dado o sinal, mas que não tinha vindo buscar o carro. E eu disse: então é meu?
Acredita que aquele carro virou o “Magic Merlyn”?
Venci com ele, mas corri só dois meses com o carro, porque fui a seguir para a Fórmula 3. Vendi para o Colin Vandervell, que teve um número enorme de vitórias na história de um Fórmula Ford.
Depois, ele o vendeu para o Jody Scheckter. O Jody, por sua vez, também ganhou com o carro, um ano e meio depois. No total, foram 30 e tantas vitórias do “Magic Merlyn”, que ainda existe.

Vivendo em Londres
Morei inicialmente numa pensão em Wimbledon, pertinho do estádio de tênis. Era uma pensão de cinco quartos e Mr. E Mrs. Benson viraram meu pai e minha mãe na Inglaterra.
Me tratavam bem demais, foi muito legal. De dia, trabalhava na oficina do Dennis Hoover, que era preparador de motores. E, à noite, eu preparava o motor junto com ele: o motor do meu próprio carro de corrida!

“Bella Italia”
Adoro ir à Itália porque, realmente, a nossa cultura, aqui em São Paulo, tem muito a ver com a cultura italiana: o jeito, os hotéis, o restaurante, a vida.
Vou muito a negócios para lá, estou sempre mais em Milão, mas uma localidade que eu gosto muito, nos últimos anos, porque melhorou muito, é Capri, um lugar muito especial.
Do lado de pai, meus ancestrais italianos vieram de Basilicata, no sul da Itália. Falei recentemente para a minha mulher que quero ir pra lá, conhecer, com toda a família.
Meu pai [o radialista e ex-piloto Wilson Fittipaldi] esteve com a minha mãe lá, há muitos anos…
Mas cidade dos Fittipaldi se chama Trecchina [pequena cidade da Basilicata, na província de Potenza]. Meu avô, pai do meu pai, veio para cá em 1901 ou 1902.

Viver nos EUA
Na segunda parte da minha carreira, depois da F-1, foi uma surpresa boa morar nos Estados Unidos. Gosto muito de lá. Todos os meus filhos moram nos Estados Unidos, só os pequenininhos que estão aqui.
Num certo sentido, os Estados Unidos são um país como o Brasil, com gente do mundo todo. Eu estou ainda na Flórida, mas, dos meus filhos, a mais velha mora em Charlotte, por causa do Pietro [neto de Emerson, que é piloto da categoria norte-americana Nascar].
Minha outra filha, Tatiana, casada com [o piloto italiano] Max Papis, que também está na Nascar, também mora em Charlotte.
Outro filho, o Luca, está fazendo faculdade em Nova York. E tem o meu filho mais velho, Jayson, que mora em Miami, tem uma agência de webdesign, já há dez anos.
Como empresário, montei com o Peter Yanowich um advogado amigo meu, um “concierge” em Miami que se chama Elements.
Na Flórida, nos idos dos anos 1980, houve um fluxo muito grande de brasileiros comprando propriedades lá. Depois, esfriou, no fim dos anos 1990 e início dos 2000. Agora, esquentou de novo, por causa do câmbio, e tem muito brasileiro comprando imóveis lá.

Um amigo beatle, e outro, veterano
Fiquei amigo do George Harrison por causa das corridas. A primeira vez que nos falamos foi em Brands Hatch, no GP da Inglaterra de 1972. Ele foi lá nos boxes e a gente começou a conversar –eu fiquei muito amigo dele, um cara muito legal.
Outra pessoa inspiradora foi o Chico Landi [piloto brasileiro pioneiro, correu na Europa nos anos 1940 e 1950].
Um dia, fui apresentado ao comendador Enzo Ferrari e fui almoçar com ele. O comendador queria que eu corresse para eles o mundial de Marcas, mas eu tinha acabado de assinar com a Lotus para correr na F-1. Acabei recusando –nessa época, só estava interessado na F-1–, mas lembro bem quando ele perguntou: “Fittipaldi, como está “Kiko” Landi?”. Em italiano o ‘ch’ tem som de ‘k”. E eu respondi: “seu Chico, comendador, mandou um abraço”. Ele ficou todo alegre: Chico Landi foi um talento.

O F-1 brasileiro
Acho que, na época, o Copersucar-Fittipaldi foi um projeto avançado demais para o Brasil, que ainda não conhecia a F-1. E, como o país ainda não tinha tradição, acho que a imprensa, na época, não deu valor aos resultados que a equipe estava obtendo, porque era muito imediatista, não estava pensando a longo prazo.
A minha participação, como duas vezes campeão, criou uma pressão maior. Todo mundo queria resultado imediato e o melhor ano que nós tivemos foi um dos últimos, 1980.
Naquele ano, estávamos com a melhor equipe em termos de capacidade humana.
Vou dar dois nomes: tínhamos como projetista-chefe o Harvey Postlethwaite, e como ajudante de projetista e aerodinamicista, Adrian Newey –que nós tiramos do Imperial College, porque tinha sido o melhor aluno daquela turma em aerodinâmica.
O Adrian Newey entrou como assistente do Harvey e este, quando saiu da nossa equipe, foi para a Ferrari e ganhou o campeonato mundial [de construtores, em 1982].
E o chefe da equipe era o Peter Warr, que havia feito carreira na Lotus. No meu primeiro ano na Lotus, ele já estava lá. Pela mão dele passaram campeões como o Jochen Rindt, eu, o Ayrton Senna e o Mario Andretti.
E os mecânicos que a gente tinha, todos eles eram “top”. Uma equipe de primeira. Naquele ano, estávamos patrocinados pela Skol. Era um contrato de um ano de patrocínio. E a Skol entrou e eles nos falaram: “Ah, precisamos ver a repercussão da imprensa brasileira para valer a pena ter o patrocínio”, porque o Copersucar tinha virado meio gozação, na época, tinha virado “o açucareiro”…

O sonho acabou…
Em julho de 1980, o novo chassi do Copersucar-Fittipaldi ficou pronto e o Keke Rosberg era meu companheiro de equipe, um supertalento.
A gente foi para Hockenheim, na Alemanha ele se classificou em oitavo, e eu, em 12º. E era a primeira vez que aquele carro andava num Grande Prêmio. O potencial estava lá, mas em setembro a Skol nos disse que não ia prosseguir [com o patrocínio], porque continuou meio gozação aqui no Brasil….
Acho que a imprensa de hoje entende mais do que entendia naquela época. Por exemplo: em 1973, eu fui vice-campeão com a Lotus. Fui campeão em 1972 e o Jackie Stewart [escocês, tricampeão mundial de F-1] ganhou em 1973. Lembro que, quando cheguei no Brasil, estava numa coletiva e um jornalista perguntou: “Emerson, o que aconteceu? Você só chegou em segundo?” (risos). Aí eu falei: “Olha, foi um ano difícil…” e expliquei.

1973, um vice-campeonato
Em 1973, sem conseguir passar o meu companheiro de equipe na Lotus, o piloto sueco Ronnie Peterson [(1944-1978)], no GP da Itália, terminei vice-campeão de F-1. Mas nossa relação, ao contrário do que se possa pensar, não azedou. Não foi com ele, que era um super-amigo, que fiquei triste. Foi como o Colin [Chapman, dono da Lotus].
Nessa corrida, eu tinha a chace de, matematicamente, ganhar o Mundial. Em Monza, antes da corrida, o Colin falou para nós: “Vocês larguem e, se estiverem sozinhos na frente, quando faltar 15 voltas, se você, Ronnie, estiver ganhando, e o Emerson em segundo, eu dou um sinal de que faltam 15, 14 voltas, e vocês trocam de posição.
Isso se o terceiro colocado não estiver muito perto, aí você tem chance de ganhar o Mundial”. Está bom, tudo concordado. Largamos. Grudei no câmbio do Ronnie e fiquei a corrida inteira grudado. Quando faltavam 15 voltas –não tinha rádio nessa época–, não lembro quem estava em terceiro, mas sei que não estava perto da gente [era Peter Revson]. Eu esperei o sinal e não veio. Nada, nada. Quando faltavam dez voltas, pensei, vou atacar o Ronnie. As últimas dez voltas eu fiquei tentando passá-lo, não consegui e terminei no câmbio dele. Terminou a corrida e eu fui como um louco falar com o Colin, não com o Ronnie –porque o Ronnie havia feito o certo. Então, o Colin me disse: “Ah, Emerson, eu resolvi não dar porque achei muito difícil você ganhar o campeonato”.
Na segunda-feira, comecei a falar com a McLaren, com todo mundo. Fui embora [da Lotus] porque não dava, havia perdido a chance de ganhar o Mundial. Quase ganhei. Porque faltavam duas corridas: no Canadá [onde foi segundo colocado] e nos Estados Unidos. Nesta, o Jackie Stewart, já campeão, nem correu, porque morreu o François Cevert [seu companheiro de equipe na Tyrrell, durante os treinos para a corrida].

Raízes do automobilismo brasileiro
Recentemente, recebi um documentário, um ano atrás, encomendado pela Willys Overland, com toda a história do automobilismo brasileiro. Circuito da Gávea, em 1920 e pouco, está Manuel de Teffé e quem está sentado do lado, com o chapeuzinho? Santos Dumont!
Ele está sentado no carro de Manuel de Teffé e no documentário o locutor não percebeu. Voltei: “Mas é o Santos Dumont, lá!”
Outro fato curioso dos primórdios do automobilismo no Brasil se relaciona ao acidente com da piloto francesa Hellé Nice, que era de Nice, em 1936, em São Paulo.
Meu pai estava assistindo. [O acidente], aliás, quase pegou meu pai. Ele estava na arquibancada, ao lado, de escoteiro. Escoteiro de Santo André.
O carro desgarrou e matou cinco pessoas no Jardim América, em São Paulo.

O primeiro acidente
[A pedido da Folha, o antigomobilista Julio Penteado mostrou a Emerson fotos de um dos primeiros acidentes de Emerson, em Interlagos, em 1966. As imagens, inéditas, de autoria do engenheiro ambiental João Rodrigues, que na época tinha entre 16 e 17 anos, não foram publicadas a pedido de Emerson, que tinha medo que os pais não o deixassem correr mais de automóvel].
Rodei na curva três e fui parar no mato. E daí, vi o fotógrafo, o João, que devia ter 17 anos, ou 16 anos, tirando as fotos. Perguntei: “Você é repórter?” Ele falou: “Não, sou estudante”.
Você imagina a cena? Então eu falei, não publica essas fotos porque senão meu pai e minha mãe não me deixam mais correr!
[Emerson Fittipaldi, apontando na foto do acidente:] O Wilson, meu irmão [o piloto Wilson Fittipaldi Jr., piloto e idealizador do primeiro F-1 brasileiro], está aqui do meu lado, vendo.
Está aqui o mecânico; aqui o Chiquinho Rosa, você viu o Chiquinho Rosa [administrador do circuito de Interlados]? Olha o Chiquinho Rosa aqui, olha. Esse era meu mecânico.
Essa aqui é a molecada que mora[va] lá perto. Essa aqui eu tirando o carro, empurrando, o Wilson ajudando…

Fonte: FOLHA Turismo

SILVIO CIOFFI
EDITOR DE “TURISMO”
DANIEL MÉDICI
JULIO PENTEADO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA


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